Bem forte, suave e austero
Vem o moço sagaz e singelo
Vê o dia nascer na palma da imensidão
E sente o perfume da relva doce-paixão
Ao longe, de traz da serra verde-capim
O moço ouve toda beleza dos arvoredos
Musica os sabores das frutas-enredos
Respira o ar das laranjeiras-jasmim
Colhe o mel das cachoeiras sem fim
E brinca feliz nos braços do jovem curumim
E quando a tarde se revela
Apresenta-se o fulgor de uma nova era
Há mais luz, cor e verbos no espaço
O verde sapê e o amarelo-ipê juntos no mesmo compasso
Gritando a vida fora das torres de aço
Tico-tico, Sabiá, Azulão, Papagaio, Quero-quero
Chega a noite, espero, berro, revelo e quero-quero já
De volta a vida nobre sobre o ar
O recado está dado, o Bem-te-vi mandou avisar
Ai do moço afoito que ouse lho desafiar!
No vento, (in)vento!
quinta-feira, 15 de dezembro de 2016
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
(Álvaro de Campos)
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
(Álvaro de Campos)
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
Círculo de fogo
Sim, nós falhamos.
Não, nem sempre aprendemos com os tropeços.
Talvez, seja o modo que encontramos para lidar com a corruptibilidade da vida.
E chega a ser ridículo - no sentido mais literal e bizonho da palavra -, na medida em que não criar um mecanismo de auto-defesa contra os espinhos futuros, é uma falta de engenhosidade, é negar a racionalização da vida (da qual tanto nos orgulhamos).
Mas é a maldita esperança que nos leva a acreditar que não existirão novos espinhos ou peçonhas fulminantes no meio do caminho. É a verdeloquência burra dos simbolos ingênuos que nos faz crer que um raio jamais cairá novamente sobre nossas cabeças desprotegidas e débeis.
Ou talvez seja só a burrice absorta que nos leva ao eterno falibilismo e a reincidência, ao ponto velho de novo.
Esperto mesmo são os animais. Desconfiados. Atentos. Ladinos e escorregadios.
Nossa forma de achar que tudo se resolverá no final, que a vida é feita de cores cintilantes e happy ends, está tão sujeita a socos lancinantes no estômago, quanto um lutador de vale-tudo, no auge do segundo hond. Viver é pular, constantemente, para dentro de poços obscuros.
Mas será que é justo apostar tão alto? Vale a pena continuar caminhando de modo inseguro, insurgente ou até mesmo imprudente sobre os mesmos caminhos perniciosos?
Todos os manuais de auto-ajuda e tutoriais de vida feliz, unanimimente, dirão que sim! Que precisamos continuar seguindo. Ou que o medo de se arriscar é um entrave absurdo em nossas vidas.
Porém, então, gostaria que todos os doutores especialistas em caminhos retilíneos e descomplicados, viessem me contar, como chegamos até aqui hoje, sem o medo como mola propulsora.
Cada conjunto destes de horas, ao qual chamamos de dia, nada mais são, do que roletas russas indomáveis. Num dia você cai, some do mundo inteiro, submerge num vazio abissal e inatingível, noutro, está ao pé do sol, no cume tão alto e iluminado, que lhe é possível enxergar as supernovas acontecendo dentro da esfera de hélio.
Saltar pra fora do círculo de fogo que nos rodeia seria tão arriscado e ao mesmo tempo libertador, mas, isso nos assusta tanto, por que não temos mecanismos eficazes capazes de nos proteger da escuridão que se estende por detrás das chamas.
sexta-feira, 15 de maio de 2015
30 tiros de emoção
Sob o véu distópico da noite, encobrem-se um milhão e meio de mistérios. Ligações insanas entre o terreno e o etéreo. Grande ciranda cigana: carrossel transloucado de cheiros, gemidos, dores, gostos e cores. Todo movimento é mundano. Cada vento é Santo. A leveza de um e o impacto do outro, juntos, formam um furacão catalisador; que coopta pra dentro do seu olho - rodopiando freneticamente - todo e qualquer resquício de sentimentos. Os signos ressignificam-se e se misturam numa pulsação de novidades. Teologia de neologismos. Explosão de instintos. Artifícios furta-cores.
Cada centímetro de asfalto, carrega consigo o peso da existência humana, testemunha fria, insólita, incólume e silenciosa das vidas, dos passos, do trânsito, dos choros, do sangue e do suor das pessoas.
Naquele domingo de céu sem estrelas, com pouca (ou nenhuma) movimentação, no cruzamento entre a São José e a Delta Fernandes, quase um beco, mal iluminado, estava Altamira. O batom vermelho-sangue-vulgar, contrastava com seus olhos tristes; seu vestido preto batido, quotidiano, da labuta diária, combinava com a opacidade de seu sorriso amarelo. O salto 15 e a meia calça 13 fios (cor da pele), davam-lhe um ar de jovialidade pagã. Seu cabelo castanho-aloureado, matizado de algum branco fosco, desalinhado, solto a revelia do vento, meio liso-ondulado, indefinido e inconstante, denunciava-lhe a idade e os traços da sua personalidade.
Seu corpo, sua pele cor de argila-barro-ocre e as rugas no rosto, são as provas vivas da ação imperdoável do tempo. O rei da vida, deixou-lhe marcas indisfarçáveis e indeléveis na existência. A lição é severa: o mesmo oxigênio que nos mantém vivos, é o que oxida, enferruja e corrói nossos mecanismos motrizes, os nossos corpos - que são os templos de nossos espíritos. Mas, tais estigmas são, também, os sinais da força, da batalha pela vida, dos instintos de sobrevivência, dos choques e corridas incontroláveis. São as cicatrizes de uma odisseia espinhenta, cortante e sofrida.
Quando o seu marido morreu, deixando-lhe alguns vinténs, um barraco apertado, os trapos velhos e todas as dívidas de uma vida, seu coração chorou: a dor da perda e a dor da queda no fundo do poço.
Virou puta, mulher da vida, prostituta, taberneira, rampeira, noturna, pantera, qualquer...
- Puta aos 40!
Repetia para si mesma. Exaustivamente. Com lágrimas e soluços rotos. Era a maneira de internalizar os fatos, fingir que tudo aquilo um dia seria normal.
Amor, amor, mesmo, de verdade, daqueles que marcam e tiram o sono, que apertam o peito e deixa qualquer um sem ar? Só teve um. Ficou lá na memória, guardado, inatingível, como tesouro cercado de areia movediça. Mas isso é assunto que ninguém comenta. São muitas BR's de distância e sinuosidade. Descaminhos traiçoeiros e ardilosos.
Sobreviver exige desmemoriação. Pensar e lembrar são exercícios que não enchem prato algum. Por que só quem já viu o sorriso malévolo, dentuço, tubaronesco da fome, sabe o que significa: re-sis-tir. Na vida não existem feriados, finais de semanas ou dois altos. Existir é um peso que mais ninguém pode carregar.
Foi ali mesmo, naquele cruzamento escuro, naquele domingo. Depois daquele vento meio sem propósito, balançado as árvores da rua, chacoalhando os fios dos postes, um pouco antes das luzes começarem a vacilar, dos gatos e cachorros correrem produzindo uns sons guturais, bem junto da orquestra de janelas batendo e se fechando. Ali. Poderia ter sido em qualquer outro lugar. Qualquer país ou continente. Mas foi exatamente ali: que aquele Jaguar preto parou, durante eternos cinco minutos, houve um terço de tempo dedicado ao silêncio, a morbidez e o restante de ação.
Altamira só via cores magentas, rindo-se bestamente, sentindo uma leveza estranha e gostosa, dum modo como nunca sentira antes na vida. Era como se o Patrick Swayze a carregasse por aí, teve até a certeza de ter ouvido The time of my life, tocando em acordes perfeitos. "Nossa, como ele é forte e lindo", pensou. Até fechou os olhos para apenas sentir melhor as coisas. Mordeu o lábio inferior, deu um sorriso de canto de boca, havia algo de prazeroso naquilo tudo. Muitas correntes elétricas percorriam todo o seu corpo, ela podia sentir o movimento deles dentro do seus vasos sanguíneos. E quando não suportou mais, ela chorou, de alegria, tristeza, de dor. Um colapso, muitos vultos, suspiros e latências. Parou. Concentrou-se na energia. Ficou plenamente serena e doce quando ouviu ao longe a voz da sua mãe. Abriu os olhos com vigor, e, como num passe de mágica, viu Inácio, seu grande amor da juventude. Abraçaram-se longamente, com força e paz.
No outro dia, de manhã bem cedo, antes mesmo do pão fresco da padaria, nas bancas estavam os novos jornais. Na manchete, lia-se: "A vítima morreu na hora após disparos a queima roupa: foram 30 tiros de emoção".
Cada centímetro de asfalto, carrega consigo o peso da existência humana, testemunha fria, insólita, incólume e silenciosa das vidas, dos passos, do trânsito, dos choros, do sangue e do suor das pessoas.
Naquele domingo de céu sem estrelas, com pouca (ou nenhuma) movimentação, no cruzamento entre a São José e a Delta Fernandes, quase um beco, mal iluminado, estava Altamira. O batom vermelho-sangue-vulgar, contrastava com seus olhos tristes; seu vestido preto batido, quotidiano, da labuta diária, combinava com a opacidade de seu sorriso amarelo. O salto 15 e a meia calça 13 fios (cor da pele), davam-lhe um ar de jovialidade pagã. Seu cabelo castanho-aloureado, matizado de algum branco fosco, desalinhado, solto a revelia do vento, meio liso-ondulado, indefinido e inconstante, denunciava-lhe a idade e os traços da sua personalidade.
Seu corpo, sua pele cor de argila-barro-ocre e as rugas no rosto, são as provas vivas da ação imperdoável do tempo. O rei da vida, deixou-lhe marcas indisfarçáveis e indeléveis na existência. A lição é severa: o mesmo oxigênio que nos mantém vivos, é o que oxida, enferruja e corrói nossos mecanismos motrizes, os nossos corpos - que são os templos de nossos espíritos. Mas, tais estigmas são, também, os sinais da força, da batalha pela vida, dos instintos de sobrevivência, dos choques e corridas incontroláveis. São as cicatrizes de uma odisseia espinhenta, cortante e sofrida.
Quando o seu marido morreu, deixando-lhe alguns vinténs, um barraco apertado, os trapos velhos e todas as dívidas de uma vida, seu coração chorou: a dor da perda e a dor da queda no fundo do poço.
Virou puta, mulher da vida, prostituta, taberneira, rampeira, noturna, pantera, qualquer...
- Puta aos 40!
Repetia para si mesma. Exaustivamente. Com lágrimas e soluços rotos. Era a maneira de internalizar os fatos, fingir que tudo aquilo um dia seria normal.
Amor, amor, mesmo, de verdade, daqueles que marcam e tiram o sono, que apertam o peito e deixa qualquer um sem ar? Só teve um. Ficou lá na memória, guardado, inatingível, como tesouro cercado de areia movediça. Mas isso é assunto que ninguém comenta. São muitas BR's de distância e sinuosidade. Descaminhos traiçoeiros e ardilosos.
Sobreviver exige desmemoriação. Pensar e lembrar são exercícios que não enchem prato algum. Por que só quem já viu o sorriso malévolo, dentuço, tubaronesco da fome, sabe o que significa: re-sis-tir. Na vida não existem feriados, finais de semanas ou dois altos. Existir é um peso que mais ninguém pode carregar.
Foi ali mesmo, naquele cruzamento escuro, naquele domingo. Depois daquele vento meio sem propósito, balançado as árvores da rua, chacoalhando os fios dos postes, um pouco antes das luzes começarem a vacilar, dos gatos e cachorros correrem produzindo uns sons guturais, bem junto da orquestra de janelas batendo e se fechando. Ali. Poderia ter sido em qualquer outro lugar. Qualquer país ou continente. Mas foi exatamente ali: que aquele Jaguar preto parou, durante eternos cinco minutos, houve um terço de tempo dedicado ao silêncio, a morbidez e o restante de ação.
Altamira só via cores magentas, rindo-se bestamente, sentindo uma leveza estranha e gostosa, dum modo como nunca sentira antes na vida. Era como se o Patrick Swayze a carregasse por aí, teve até a certeza de ter ouvido The time of my life, tocando em acordes perfeitos. "Nossa, como ele é forte e lindo", pensou. Até fechou os olhos para apenas sentir melhor as coisas. Mordeu o lábio inferior, deu um sorriso de canto de boca, havia algo de prazeroso naquilo tudo. Muitas correntes elétricas percorriam todo o seu corpo, ela podia sentir o movimento deles dentro do seus vasos sanguíneos. E quando não suportou mais, ela chorou, de alegria, tristeza, de dor. Um colapso, muitos vultos, suspiros e latências. Parou. Concentrou-se na energia. Ficou plenamente serena e doce quando ouviu ao longe a voz da sua mãe. Abriu os olhos com vigor, e, como num passe de mágica, viu Inácio, seu grande amor da juventude. Abraçaram-se longamente, com força e paz.
No outro dia, de manhã bem cedo, antes mesmo do pão fresco da padaria, nas bancas estavam os novos jornais. Na manchete, lia-se: "A vítima morreu na hora após disparos a queima roupa: foram 30 tiros de emoção".
terça-feira, 28 de abril de 2015
Dois pontos e meio de um diálogo
Harper Pitt – Foi difícil atravessar as planícies?
Mãe Mormon – Você não é burra! Não faça perguntas tolas, e sim espertas.
Harper Pitt – Na sua experiência do mundo, como as pessoas mudam?
Mãe Mormon – Bem, tem alguma coisa a ver com Deus, então, não é muito
agradável.
Deus rasga a pele, com uma unha denteada, da garganta à barriga.
E aí enfia uma mão imensa e suja lá dentro. Ele agarra os seus canos
sangrentos, e, você desliza para escapar, mas, ele agarra firme. Ele insiste!
Ele puxa e puxa... Até que suas vísceras sejam arrancadas para fora.
E a dor...
Nem consigo falar sobre isso.
E aí Ele as enfia de volta. Sujas, enroscadas, rôtas. Cabe a você dar os
pontos.
Harper Pitt – Levante-se. E vá em frente!
Mãe Mormon – Somente vísceras destroçadas, fingindo.
Harper Pitt – É.
Harper Pitt – É assim que as pessoas mudam?
Mãe Mormon – Yes!
Esse diálogo entre Harper e a Mãe Mormon, extraído da minissérie
Angels in America (Anjos na América), transporta-nos para a teatralidade dessa
obra, como também, coloca-nos num confronto forte e belo sobre a mutabilidade
existencial. <3
quinta-feira, 23 de abril de 2015
O GRITO DE GUERRA E UMA CHAMA DE PAZ
Do ventre sereno e materno
das matas,
Surge um assovio distante,
Que corta e corrompe o
silêncio dos imensos jequitibás
Num curto instante,
mangueiras, jaqueiras põem-se a dançar
Convite ao encontro de olhar
Assovia-se daqui e ouve-se
de lá
De repente, tambores,
chocalhos e repiques a soar
Convergem num grito de
guerra
Que personifica-se no ar
E num claro instante,
Da energia dos espíritos do
sol
Cingido pela força dos
talismãs da natureza
Nascido duma semente de luz
e beleza
Germinada na maciez da terra
Regado pelas fontes de água
doce e translucida
Forjado no fogo, de oxigênio
infinito
Brota o grande guerreio
sagaz
Sua pele vermelho-urucum,
cintila contra o sol
Seus pés ágeis e
sincronizados
Seguem o fluxo dos ventos
Tem a força motriz das
cachoeiras
Seu sangue é seiva da flor,
do mel, das árvores
Seus órgãos tem o formato de
fruta madura
Tem olhos de lince, rapina,
águia veloz
Cada centímetro seu, é,
também, parte do seu habitat
Existência simbiótica humano-florestal
E, como esse nobre guerreiro
Xamã
Existem outros centenas
mais!
Afluentes de um mesmo rio
Que se espalham de norte a
sul do Brasil
Cada homem, criança, mulher
Vive a cosmologia do
universo, do espaço
A ancestralidade, o amor à
vida natural
Os valores dos céus e da
terra
O respeito a dignidade
animal
Estabelecendo tessituras,
Trançando suas histórias com
força, cipó e fé
Erguendo abrigos contra o
mal invasor
Reafirmando as raízes diante
do mundo coisificador
Dentro dos Opy`s
Os mestres, àqueles que enxergam no escuro e
além
Convidam todos os povos a
lutar
E a batalha é constante, diária!
Uma guerra contra a
invisibilização
Contra o horror da
aculturação
Contra o silêncio duro da
lei e sua ordenação
Contra a matança odiosa da
simplificação
Contra a bestialidade da
caricaturização
Contra a perversidade da
expropriação
Então, num coro avassalador
Destruindo as correntes do
ciclo de terror
Guaranis Ñandeva, Mbya e Kaiowá
Farão se ouvir falar
Kayapós, Yanomamis, Arawetés
Libertar-se-ão do sensacionalismo
burro das TV`s
E, todo choro de sofrimento
e dor,
Dos Munduruku, Potiguara,
Kamaiurá
Finalmente cessará
Os raios solares atingirão
novamente a América do Sul e iluminarão a façanha
Da união magnânima dos
Amanayé, Xavante, Araweté, Pataxó e Miranha
Vencendo o ódio e derrubando
toda e qualquer artimanha
Uma chama indômita de paz e
fulgor
Queimará para sempre os
vestígios do medo e horror
E, do Oiapoque ao Chuí
Novamente, todos povos voltarão a
sorrir.
sábado, 14 de março de 2015
A garota dos olhos lilás
Cabelos de relva fria e densa do orvalho da manhã. Uma cadência espetacular. Sua silhueta é potência que nem as formas mutantes do deserto é capaz de alcançar. Caminha levemente sob as ondas de luz. Brinca de estrela. Navega na cintilação dos ventos nobres. Seu coração arde, flameja e jorra lavas de paixão. Sua pele brilha quando anoitece, derrete quando chove e cristaliza-se com a força do sol. Tem uma malemolência estranha e encantadora. E quando ela ri!? Ah, é um riso souto, espalhado, estridente, saltitante feito lebre no descampado. Suas mãos são alvas e ternas como a candura das águas doces. Mas é forte feito rocha. É filha do fogo e da terra. Tem um olhar arrebatador, que destrói, corrompe e fulmina as barreiras do dizível. É a garota dos olhos lilás, cor púrpura do céu das tardes de verão. Temperamento fugaz e volátil como o ar. Ela sonha em ser mulher, desbravar outros horizontes, seguir novos caminhos. Mas, suas convicções de vida, fazem-na saber: que há hora de plantar e hora de colher. E devagarzinho ela vai aprendendo, com o ciclo infinito da vida, com o romper de cada manhã, que a melhor forma de existir é caminhando sobre o hoje, rumo ao futuro, de pés descalços e alma lavada, de cara na chuva, sem medo de se molhar.
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