sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


(Álvaro de Campos)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Círculo de fogo

Sim, nós falhamos. 
Não, nem sempre aprendemos com os tropeços. 
Talvez, seja o modo que encontramos para lidar com a corruptibilidade da vida. 
E chega a ser ridículo - no sentido mais literal e bizonho da palavra -, na medida em que não criar um mecanismo de auto-defesa contra os espinhos futuros, é uma falta de engenhosidade, é negar a racionalização da vida (da qual tanto nos orgulhamos). 
Mas é a maldita esperança que nos leva a acreditar que não existirão novos espinhos ou peçonhas fulminantes no meio do caminho. É a verdeloquência burra dos simbolos ingênuos que nos faz crer que um raio jamais cairá novamente sobre nossas cabeças desprotegidas e débeis. 
Ou talvez seja só a burrice absorta que nos leva ao eterno falibilismo e a reincidência, ao ponto velho de novo. 

Esperto mesmo são os animais. Desconfiados. Atentos. Ladinos e escorregadios.

Nossa forma de achar que tudo se resolverá no final, que a vida é feita de cores cintilantes e happy ends, está tão sujeita a socos lancinantes no estômago, quanto um lutador de vale-tudo, no auge do segundo hond. Viver é pular, constantemente, para dentro de poços obscuros. 

Mas será que é justo apostar tão alto? Vale a pena continuar caminhando de modo inseguro, insurgente ou até mesmo imprudente sobre os mesmos caminhos perniciosos? 
Todos os manuais de auto-ajuda e tutoriais de vida feliz, unanimimente, dirão que sim! Que precisamos continuar seguindo. Ou que o medo de se arriscar é um entrave absurdo em nossas vidas. 
Porém, então, gostaria que todos os doutores especialistas em caminhos retilíneos e descomplicados, viessem me contar, como chegamos até aqui hoje, sem o medo como mola propulsora. 

Cada conjunto destes de horas, ao qual chamamos de dia, nada mais são, do que roletas russas indomáveis. Num dia você cai, some do mundo inteiro, submerge num vazio abissal e inatingível, noutro, está ao pé do sol, no cume tão alto e iluminado, que lhe é possível enxergar as supernovas acontecendo dentro da esfera de hélio. 

Saltar pra fora do círculo de fogo que nos rodeia seria tão arriscado e ao mesmo tempo libertador, mas, isso nos assusta tanto, por que não temos mecanismos eficazes capazes de nos proteger da escuridão que se estende por detrás das chamas.