sexta-feira, 15 de maio de 2015

30 tiros de emoção

Sob o véu distópico da noite, encobrem-se um milhão e meio de mistérios. Ligações insanas entre o terreno e o etéreo. Grande ciranda cigana: carrossel transloucado de cheiros, gemidos, dores, gostos e cores. Todo movimento é mundano. Cada vento é Santo. A leveza de um e o impacto do outro, juntos, formam um furacão catalisador; que coopta pra dentro do seu olho - rodopiando freneticamente - todo e qualquer resquício de sentimentos. Os signos ressignificam-se e se misturam numa pulsação de novidades. Teologia de neologismos. Explosão de instintos. Artifícios furta-cores.

Cada centímetro de asfalto, carrega consigo o peso da existência humana, testemunha fria, insólita, incólume e silenciosa das vidas, dos passos, do trânsito, dos choros, do sangue e do suor das pessoas.
Naquele domingo de céu sem estrelas, com pouca (ou nenhuma) movimentação, no cruzamento entre a São José e a Delta Fernandes, quase um beco, mal iluminado, estava Altamira. O batom vermelho-sangue-vulgar, contrastava com seus olhos tristes; seu vestido preto batido, quotidiano, da labuta diária, combinava com a opacidade  de seu sorriso amarelo. O salto 15 e a meia calça 13 fios (cor da pele), davam-lhe um ar de jovialidade pagã. Seu cabelo castanho-aloureado, matizado de algum branco fosco, desalinhado, solto a revelia do vento, meio liso-ondulado, indefinido e inconstante, denunciava-lhe a idade e os traços da sua personalidade.

Seu corpo, sua pele cor de argila-barro-ocre e as rugas no rosto, são as provas vivas da ação imperdoável do tempo.  O rei da vida, deixou-lhe marcas indisfarçáveis e indeléveis na existência. A lição é severa: o mesmo oxigênio que nos mantém vivos, é o que oxida, enferruja e corrói nossos mecanismos motrizes, os nossos corpos - que são os templos de nossos espíritos. Mas, tais estigmas são, também, os sinais da força, da batalha pela vida, dos instintos de sobrevivência, dos choques e corridas incontroláveis. São as cicatrizes de uma odisseia espinhenta, cortante e sofrida.
Quando o seu marido morreu, deixando-lhe alguns vinténs, um barraco apertado, os trapos velhos e todas as dívidas de uma vida, seu coração chorou: a dor da perda e a dor da queda no fundo do poço.
Virou puta, mulher da vida, prostituta, taberneira, rampeira, noturna, pantera, qualquer...
- Puta aos 40!
Repetia para si mesma. Exaustivamente. Com lágrimas e soluços rotos. Era a maneira de internalizar os fatos, fingir que tudo aquilo um dia seria normal.
Amor, amor, mesmo, de verdade, daqueles que marcam e tiram o sono, que apertam o peito e deixa qualquer um sem ar? Só teve um. Ficou lá na memória, guardado, inatingível, como tesouro cercado de areia movediça. Mas isso é assunto que ninguém comenta. São muitas BR's de distância e sinuosidade. Descaminhos traiçoeiros e ardilosos.
Sobreviver exige desmemoriação. Pensar e lembrar são exercícios que não enchem prato algum. Por que só quem já viu o sorriso malévolo, dentuço, tubaronesco da fome, sabe o que significa: re-sis-tir. Na vida não existem feriados, finais de semanas ou dois altos. Existir é um peso que mais ninguém pode carregar.
Foi ali mesmo, naquele cruzamento escuro, naquele domingo. Depois daquele vento meio sem propósito, balançado as árvores da rua, chacoalhando os fios dos postes, um pouco antes das luzes começarem a vacilar, dos gatos e cachorros correrem produzindo uns sons guturais, bem junto da orquestra de janelas batendo e se fechando. Ali. Poderia ter sido em qualquer outro lugar. Qualquer país ou continente. Mas foi exatamente ali: que aquele Jaguar preto parou, durante eternos cinco minutos, houve um terço de tempo dedicado ao silêncio, a morbidez e o restante de ação.

Altamira só via cores magentas, rindo-se bestamente, sentindo uma leveza estranha e gostosa, dum modo como nunca sentira antes na vida. Era como se o Patrick Swayze a carregasse por aí, teve até a certeza de ter ouvido The time of my life, tocando em acordes perfeitos. "Nossa, como ele é forte e lindo", pensou. Até fechou os olhos para apenas sentir melhor as coisas. Mordeu o lábio inferior, deu um sorriso de canto de boca, havia algo de prazeroso naquilo tudo. Muitas correntes elétricas percorriam todo o seu corpo, ela podia sentir o movimento deles dentro do seus vasos sanguíneos. E quando não suportou mais, ela chorou, de alegria, tristeza, de dor. Um colapso, muitos vultos, suspiros e latências. Parou. Concentrou-se na energia. Ficou plenamente serena e doce quando ouviu ao longe a voz da sua mãe. Abriu os olhos com vigor, e, como num passe de mágica, viu Inácio, seu grande amor da juventude. Abraçaram-se longamente, com força e paz.

No outro dia, de manhã bem cedo, antes mesmo do pão fresco da padaria, nas bancas estavam os novos jornais. Na manchete, lia-se: "A vítima morreu na hora após disparos a queima roupa: foram 30 tiros de emoção".